A lei 8.935/94 ao regulamentar o art. 236 da Constituição Federal, que dispõe sobre os serviços notariais e registrais foi exemplar ao observar a simetria que deve ser seguida pelos delegatários na pratica de atos atinentes as suas respectivas competências.
Extrai-se da “Justificação” do PL 6.204/19 que “a delegação é o regime jurídico sugerido para que a desjudicialização da execução seja colocada em prática no Brasil, nos termos do artigo 236 da Constituição Federal. Dentre os agentes delegados existentes no ordenamento jurídico, sugere-se que o tabelião de protesto tenha sua atribuição alargada, para que assuma também a realização das atividades executivas, uma vez que afeito aos títulos de crédito. Além disso, propõe-se a valorização do protesto como eficiente medida para o cabal cumprimento das obrigações. Assim, confere-se ao tabelião de protesto a tarefa de verificação dos pressupostos da execução, bem como da realização de citação, penhora, alienação, recebimento do pagamento e extinção do procedimento executivo extrajudicial, reservando-se ao juiz estatal a eventual resolução de litígios, quando provocado pelo agente de execução ou por qualquer das partes ou terceiros.”
Percebe-se, com facilidade, que o legislador foi criterioso, técnico e preciso ao orientar-se pela simetria que se faz mister observar entre as funções já exercidas pelos tabeliães de protesto – sabidamente os únicos delegatórios ligados, por especialização, aos títulos executivos – e as novas atribuições que lhes são conferidas como “agentes de execução” no PL em voga, segundo se infere do art. 31, que dá nova redação ao art. 3º da lei de Regência (9.492/97).
Aliás, não se tem a menor dúvida em afirmar que a crise da prestação da tutela jurisdicional estatal encontra-se instalada e agrava-se, a cada ano, de maneira patológica com o aumento das demandas executivas denominadas pelo Conselho Nacional de Justiça em seu anuário “Justiça em Números” de “gargalo” do Poder Judiciário.
De fato, aproximadamente 54% das ações em tramitação são execuções (civis e fiscais), o que faz absorver o tempo de atuação do Estado-juiz e serventuários em prol da administração deste acervo de processos que se apresenta como uma espécie de “balcão inoperante de cobranças”, capaz de absorver o tempo e as atenções dos magistrados para prestar a verdadeira jurisdição à resolução de conflitos.
É o modelo que se desconfigura e desintegra a cada instante, fazendo avolumar a “tragédia da Justiça”1, em que a falência do modelo jurisdicional estatal se evidencia por meio do processo de execução, há muito carcomido por princípios retrógrados e práticas inoperantes fundadas numa pseudo “segurança jurídica”.
2 Por que não estender aos demais delegatários as atribuições de “agente de execução”?
Procuraremos demonstrar neste breve estudo as razões que justificam a escolha acertada do legislador no PL 6.204/19 pelos tabeliães de protesto para exercerem as atribuições de “agente de execução” e os fortes motivos que obstam e desaconselham a ampliação deste novo mister aos demais delegatários.
2.1. Réplica aos principais fundamentos que agasalham a tese da extensão das atribuições de “agente de execução” aos demais delegatários
Entendimentos têm surgido em defesa da ampliação das atribuições de agente de execução para outras serventias extrajudiciais distintas dos tabelionatos de protesto2, tomando por base três fundamentos: a) o ingresso na atividade notarial e registral se verifica por meio de concurso público para o exercício com competência geral (salvo exceção de São Paulo); b) o número total de cartórios (13.627) distribuídos entre os 5.570 municípios é muito superior aos que exercem atribuições (cumulativas ou privativas) atinentes ao protestos de títulos (3.779), o que importa em melhor e mais rápida prestação de serviços por todos os delegatários; c) tanto não estão capacitados os tabeliães de protesto para o exercício desse novo mister que o art. 22 do PL prevê a realização de cursos com este fim, e, por consectário lógico, todos os demais delegatários poderiam ser capacitados também e, assim, atuar como agentes de execução.
Com todas as vênias, os argumentos são pífios e não se sustentam, assim como as premissas em que se fundam as conclusões são equivocadas e quiçá tendenciosas, conforme demonstraremos a seguir:
a) Da equiparação do ingresso na titularidade da atividade delegada:
O ponto que merece destaque não é a prestação de concurso público em condições de igualdade, mas os desdobramentos deste fato como consectário do exercício da delegação, especialização e eficiência da prestação dos serviços.
Não resta a menor dúvida de que, com exceção do Estado de São Paulo, todos os demais oferecem concursos de provas e títulos para o ingresso na atividade delegada com competência plena. Por seu turno, o preenchimento das vagas existentes nos respectivos cartórios obedecerá sempre e rigorosamente o critério de ordem de aprovação nos exame, de maneira que os primeiros colocados passam a escolher os melhores cartórios, lá permanecendo indefinidamente, ressalvada a hipótese restrita de pedido de remoção para outro cartório de idêntica ou distinta competência, a depender de disponibilidade de vaga e aprovação em concurso interno.
Em outras palavras, os candidatos aprovados em concurso de ingresso na titularidade da atividade notarial e registral serão declarados habilitados em observância a ordem de classificação, escolherão as delegações vagas que constavam do respectivo edital, receberão a outorga e investidura na delegação e, na sequência, entrarão no exercício da atividade em determinada serventia na qual permanecerão por tempo indeterminado e sem possibilidade de mudança de competência, ressalvada a hipótese já indicada de remoção para outra serventia.
Há de se esclarecer ainda que nos termos do art. 16 da lei 8.935/94 “as vagas serão preenchidas alternadamente, duas terças partes por concurso público de provas e títulos e uma terça parte por meio de remoção…” E mais: somente serão admitidos ao concurso de remoção os titulares que exerçam a atividade por mais de dois anos, segundo disposição contida no art. 17 da lei dos Cartórios.
A matéria em exame encontra-se integralmente versada na Resolução 81 de 9 de junho de 2009, baixada pelo então Presidente do Conselho Nacional de Justiça, Ministro Gilmar Mendes, que regulamenta o ingresso, por provimento ou remoção na titularidade dos serviços notariais e de registros declarados vagos, que se dará somente por meio de concurso de provas e títulos realizado pelo Poder Judiciário, nos termos do art. 236, § 3º da Constituição Federal (art. 1º).
Em conclusão, nada obstante o candidato prestar concurso de provas e títulos acerca de conhecimentos gerais e específicos atinentes às atividades notariais e registrais, definida a escolha da serventia, que exercerá o seu mister de acordo com a sua classificação no concurso público, a permanência do delegatário em determinado cartório dará ensejo ao aprofundamento dos seus conhecimentos em sintonia com a competência que lhe é conferida por lei, donde exsurge, com o passar do tempo, a natural especialização, a melhora na prestação dos serviços (qualificação) e a maior eficiência.
A regra é a não acumulação dos serviços de notas, protestos e registros, encontrando-se a exceção em municípios que não comportam, em razão do volume dos serviços ou receita, a instalação de mais de um cartório (lei 8.935/94, art. 5º c/c art. 26).
Apenas para argumentar, se prevalecer o entendimento daqueles que defendem a prática da desjudicialização da execução civil por meio de atuação de todos os delegatários, estaremos impondo, por exemplo, a um oficial de registro imobiliário ou civil que por anos ou décadas sempre observou a especialização de seu mister, doravante a realizar análise e qualificação de um título de crédito, das partes, localizar o executado e demais atos procedimentais, com resultados evidentemente negativos para os jurisdicionados.
O retrocesso será evidente e coloca-se na contramão da história da especialização… só não enxerga quem não quer.
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1 V. Erik Wolkart. Analise Econômica do Processo Civil, pp. 657 e ss. 2020.
Há muito a prestação da tutela jurisdicional estatal, em razão elevado do volume de demandas, deixou de ser prestada de fato pelos seus juízes… o número sempre crescente de processos em desproporção ao de magistrados, somado ao perverso sistema recursal e meios de impugnação infindáveis e inçados de dificuldades, ocasionam o surgimento de uma espécie perversa “dependência do staf” com a qual convivemos há décadas, e como “Alice no País das Maravilhas”, precisamos crer que a jurisdição estatal é forjada pelos juízes.
2 Neste sentido v.: Cristiana C. do Amaral Cantídio. Dissertação de Mestrado – Universidade de Marília, 2021. “Notários e Oficiais de Registro como Agentes de Execução Civil Extrajudicial: Sugestões para o Projeto de lei 6.204, de 2019”; Flávia Hill. “Desjudicialização da Execução Civil: reflexões sobre o Projeto de lei 6.204/2019; Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Rio de Janeiro. Ano 14. Volume 21; Marcio Faria. “Primeiras impressões sobre o Projeto de lei n.º 6.204/2019: críticas e sugestões acerca da tentativa de se desjudicializar a execução civil brasileira”. São Paulo: Revista de Processo vols. 313/317. 2021. Também defendem esse entendimento no GT-CNJ criado para diagnosticar, avaliar e apresentar medidas voltadas à modernização e efetividade de atuação do Poder Judiciário, os seguintes integrantes: Candice Jobim, Antônio A. Aguiar Bastos, Marcelo Abelha Rodrigues e Heitor Sica.
Atualizado em: 15/9/2021 14:21
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Joel Dias Figueira Júnior
Pós-doutor pela Università degli Studi di Firenze e Doutor pela PUC/SP. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do IBDP; Professor de Cursos de Pós-graduação do CESUSC; foi Presidente da Comissão de Juristas que elaborou o anteprojeto de lei que deu origem ao PL 6.204/19; integrou a Comissão Especial de Assessoria da Relatoria-Geral do Código Civil na Câmara dos Deputados. Membro do Comitê Brasileiro de Arbitragem-CBAr. Desembargador aposentado do TJSC, Advogado, Parecerista e Consultor Jurídico.
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